quarta-feira, 16 de junho de 2010

Entre dados e paetês

Olhou-se no espelho e não gostou do que viu. Um corpo amorfo, adolescente, sem graça, cheio de pêlos ralos que teimavam em lhe condenar. Olhou Alexandre Frota no pôster predileto da G Magazine e se esqueceu de tudo o que lhe incomodava. “Você é uma estrela”, dizia para si mesmo tentando convencer-se. Darci puxou a echarpe roubada da mãe, passou rímel, gloss básico, brilhou e caiu na balada.
Pegou o Pantanal via universidade. Deu uma geral no ônibus, encontrou o alvo e sentou-se. Tentando inutilmente fingir desinteresse, tirou da mochila o espelhinho de maquiagem e mirou um loiro de olhos azuis sentado no fundo da lotação. A troca de olhares durou pouco. Pena, o Apolo logo saiu de cena. Depois de três pontos, chegou a vez de Darci descer em frente à farmácia, onde entrou. Ajeitou a compra dentro da caixinha escondida na pochete, o esconderijo perfeito para suas camisinhas.
Passou a mão pelo bolso traseiro da calça, sentiu arranhar seu dedo no strass bordado, mas ficou aliviado por lembrar de trazer seus dados da sorte. Não saía de casa sem eles, que eram os talismãs de suas últimas conquistas. Enquanto cruzava os três quarteirões até a boate, começou a lembrar do irmão gêmeo que chegaria de férias dali a dois dias. Se pudesse, sumiria do mapa até ele retornar para São Paulo, onde cursava engenharia na USP. Orgulho de pai e mãe, Darli era um exemplo em tudo. Todas as medalhas que o irmão já ganhara lotavam a estante da sala. Aquilo o enojava.
Estava tão envolvido em seu pensamento que quase passou reto pelo letreiro pink que iluminava quase toda a calçada na Beira Mar Norte. Pegou a carteira entediado. Os mesmos lugares de sábado à noite, a mesma falta de futuro. Enfim, a mesmice. Floripa estava um saco. Darci não esperava o dia de fazer um cruzeiro gay. Aí sim, iria encontrar o amor de sua vida. Sem cavalos brancos, sem nada. Seu príncipe sairia de uma cabine chiquetérrima e o levaria para conhecer o mundo todo a bordo de um iate podre de chique.
Mas enquanto o homem certo não chegava, fazer o quê? Ia se divertindo com os errados e hoje os errados estavam particularmente lindérrimos. Passou pelo espelho da recepção e arrumou o gel do topete. Tirou os dados do bolso. Tomara que eles dêem sorte. Afinal, nunca mais tinha dado pra ninguém. Quando olhou os dados achou engraçado. Os dois indicavam o número seis. Será coincidência?, pensou. Acabou desviando o pensamento. Perdido entre luzes vermelhas, azuis e amarelas, Darci embrenhou-se no mar de corpos dançantes. Purpurinados curtiam love and sex levados pela balada do ecstasy. Passou reto pela pista e foi pegar um Martini. Conquistando um espaço a cotoveladas, apoiou-se no balcão e ficou apreciando o movimento, ouvindo Lady Gaga e rastreando qual seria a bola da vez. O balcão era estratégico, ficava entre o bar e o banheiro. Passagem obrigatória. Todo mundo tinha que passar por um ou por outro. Queria se dar bem. Afinal, Lulu Santos é démodé, mas tem toda razão: todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite.
Cruzava olhares fazendo charme, arrumava a echarpe com mais charme ainda. Rodou várias vezes a pista e nada. Já estava tonto de tantos martinis. Como não tinha mais nada o que fazer, pegou um cigarro de canela para ficar ainda mais atraente,lógico. Sentiu náusea e correu pro banheiro. Não encontrou um só vago. Todos haviam virado minimotéis privês. A raiva que estava sentindo por estar sozinho só não era maior do que a agonia de tirar aquele gosto doce da boca. Resolveu invadir o banheiro meio feminino meio unissex e se sentiu em casa. Lavou a boca, pediu pó e rímel para uma menina insuportavelmente bonita. Ela disse: a coisa tá feia, né colega? A mulherada não quer nada hoje. Teve que concordar. Os homens também estavam bem murchinhos. Pensou seriamente em jogar seus dadinhos no lixo. Chega, pensou. Darci já se preparava para ir embora. O céu já estava irritantemente azul marinho. Os passarinhos já acordaram cantarolantes para lhe deixar ainda mais azedo. Já era hora do primeiro ônibus. Driblando os casais esparramados pela escada, pegou a fila do caixa.
Num golpe de vista, viu um moreno mara. Paralisou. Além da bebida, um torpor muito maior o incomodava agora. Gelou quando viu o moreno vir em sua direção. Ele era bem do seu tipo, alto, forte, traços grosseiros, mas ao mesmo tempo tinha um jeito tão angelical. Sentiu o coração bater esquisito, um calor. Será efeito do Martini? O peito gigante chegou pertinho do rosto de Darci e disse: com licença? Agora ele tinha certeza: esse era diferente. Darci, que não nunca sentira-se acanhado em atacar suas vítimas com a ferocidade de um tigre, agora mais parecia um gatinho.
Quando o rapaz saiu da fila, seus olhos grudaram nos de Darci. Com o olhar congelado, o rapaz deu mais alguns passos. Os dois ficaram ali, parados por alguns instantes. Darci não sabia nem o que pensar. O rapaz não sabia onde colocar as mãos, mas tinha uma certeza: queria estar ali. O rapaz veio na direção de Darci. Na verdade, o deus grego acabaria passando reto se não tivesse sido atingido por um copo que voara de uma briga. O rapaz caiu no colo de Darci, que olhou dentro dos seus olhos e disse: vem! De mãos dadas, os dois se desviaram da briga, que ia tomando toda a boate. Os dois procuraram um canto entre o banheiro e o bar, onde já não circulava mais ninguém. Salvos da pancadaria, só agora Darci percebeu que o rapaz sangrava.

- Vem cá que eu cuido disso, gaguejou Darci.
- Não precisa, respondeu o rapaz.
- Precisa sim, já pegando guardanapo e gelo.
- Qual o seu nome?
- Douglas.
Darci achara esse nome lindo. Mais fofo ainda era o sotaque meio caipira. Douglas também quis saber como o outro se chamava.
- Darci, respondeu.
Achou engraçado o sotaque ilhéu do moço. Mais engraçado ainda era o rímel e gloss que ele usava. O moço começou a se sentir estranho com tudo aquilo. Olhares cruzados, outro homem pegando nele com tanta intimidade e ele não achando ruim? De repente, sentiu um bambear nas pernas, o suar das mãos, o pulsar forte do coração, algo que nunca tinha sentido antes, até mesmo com as mais bonitas das namoradas. A batida do coração de Douglas se confundia com a batida tecno. Ele não sabia qual delas era mais ensurdecedora. Lembrou-se da história repetidamente contada por seu pai narrando o encontro entre ele e a mãe exatamente no meio de uma plantação de pêssego.
Ao se ajeitar melhor no sofá, Douglas tocou sem querer no rosto dele e os pêssegos de sua terra voltaram à mente. Prumus pérsica, como era chiquemente conhecida a fruta, também era um fruto assexuado - e como era gostoso. A cabeça de Douglas estava um tumulto muito maior que a confusão da boate, que agora começava a se acalmar. Quando tudo ficou mais calmo, os dois concordaram em ir embora. Com o sol já no alto, começaram a caminhar pela Beira Mar. Com um silêncio consentido, caminhavam traçando com o olhar uma reta entre o chão e o mar. Já os olhares alheios extravasavam a estranheza da situação. Mas isto eles nem notaram.
- Quantos anos você tem?
- 28, respondeu Douglas, repetindo a pergunta para Darci.
- Dezesseis, constrangeu-se Darci.
Vida, diversão, trabalho. Conversaram sobre tudo. Para Douglas, Darci falava tão bem, mesmo sendo tão jovem. Em Fraiburgo, onde morava, ninguém sabia conversar daquele jeito. Darci pensou no quanto os pais sentiriam orgulho com um genro como aquele. De repente se esqueceu do cruzeiro gay. Seu príncipe encantado estava ali, a pé e bem real.
De repente os dois pararam. Com os lábios grudados, o mundo foi sumindo. À saliva misturavam-se culpa, dúvida e desejo, muito desejo. Num frisson de mãos, fluídos e sensações, os dois era um só. Os olhos e um novo mundo se abriram. Sem palavras, nem promessas, trocaram telefones.
- A gente se vê por aí, despediu-se Darci.
- É, nos falamos.
Douglas estava certo. Esse sentimento estranho invade mesmo nossa vida sem pedir licença, sem se importar com a idade, sem se importar com as consequências. Não importa a idade, estatus e... gênero.
Darci olhou os dados da sorte, deu um beijo para se despedir e os jogou no mar.
- Agora eles não serão mais necessários.

2 comentários:

Marcio Rocha disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marcio Rocha disse...

Não me canso de ler seus textos. Talvez seja a melhor forma de estar sempre pertinho de você.
Te amo, minha escritora lindona.

Alvo

Tudo é gatilho: oportunidade, candidato ou suicídio.