quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Aos teus pés

Quando Diana nasceu, a vidente garantia à sua mãe que todos viveriam aos pés de sua filha. A mãe ficou orgulhosa, saiu contando para todo mundo que sua filha seria uma vitoriosa, teria uma vida de rainha, bem diferente da que foi a sua.
Ela fora um bebê lindo, loirinho de olhos azuis. Fofa, mesmo com aquelas unhinhas assim, tão estranhinhas. De tão tímida, muitos achavam que Diana era muda, motivo que a fez passar a infância sem amigos e a adolescência sem namorados. Ninguém queria se aproximar da “esquisitinha” como a chamavam, ou da menina que trocava os pés pelas mãos, segundo os vizinhos que preferiam nem mais chegar perto da garota.
Enquanto criança, o problema havia sido as constantes verminoses causadas pelo estranho tique, diagnosticado pela mãe como praga de uma vizinha. Até então, tudo foi considerado apenas uma peraltice, só que a adolescência chegou. Para ela, ir à primeira consulta no ginecologista foi tranqüilo. Difícil e torturante foi entrar pela primeira vez em um salão de beleza, empurrada pela mãe para comemorar os seus quinze anos. Afinal, já era uma mocinha e precisava desses caprichos. Deste dia Diana só lembrava estar folheando um exemplar antigo de “Contigo” e de como o nervoso de repente lhe tomara corpo e consciência. Depois os flashes de lembrança teimavam em reviver o modo com que se atirou ao chão, como um soldado em pose de ataque, ou de defesa. Ela bem que insistiu mais de uma vez, mas todas as tentativas foram fracassadas, acompanhadas pelos olhares de misericórdia das cabeleireiras. A cada vez Diana era arrastada pela mãe, que passava uma temporada enclausurada de vergonha depois de cada incidente.
Infelizes também eram suas visitas à sapataria. Entrava, olhava, passeava entre as botas 36 e os scarpins 42 e não resistia em dar uma espiada nos provadores, que refletiam aquelas pequenas e grandes figuras sempre tão concretas, tão sempre no chão, tão instigantes.
Mesmo tentando lutar contra os outros e consigo mesma, Diana resolver desistir. Já era impossível continuar na pequena vila do interior do Rio Grande do Sul tendo esta mania tão esquisita. Iria embora pra longe, bem longe, talvez algum médico da cidade grande lhe desse alguma resposta convincente para o seu mal.
Sua mãe chorava na rodoviária, mas sabia que era o melhor para a família. Também já não aguentava mais as risadas, os conselhos de internação e as chacotas dos familiares. Sua casa, antes muito freqüentada, agora era só silêncio e vergonha. Mal ouviu a última chamada tentando lembrar da oração de São Jorge, “dê pés para os meus inimigos, mas que eles nunca me alcancem. Eram pés ou asas?”. Estava confusa.
O barulho da paulicéia assustou Diana, que acertou tomar o ônibus e desembarcar em frente da pensão indicada por Cristiane, que foi a única que conseguiu manter o posto de melhor amiga por nunca ousar usar chinelos na sua frente. Os dias foram passando. Eles refletiam a cor dos prédios centenários por onde passava a caminho da escola onde lecionava. Eram todos iguais, até chegar o verão, época irritantemente perfeita para rasteirinhas, sandálias e chinelos. Ela não gostava da estação. Era nesta época que aumentava a curiosidade sobre a sua preferência por botas, de todos os estilos. Micose era a desculpa de sempre. A dor causada pelas biqueiras de couro batendo nas suas feridas não era maior do que o trauma e a vergonha das marcas do seu passado. Passava longe dos salões de beleza, sapatarias e de tudo o que lhe lembrasse seu destino esquisito e mal traçado.
Tudo foi em vão quando conheceu André, o garçom que lhe atendia diariamente no boteco onde almoçava. Algumas conversas e resolveram marcar o primeiro encontro, que para Diana tinha um peso muito maior do que para qualquer outro mortal. Era o medo da aprovação, da reprovação, da descoberta e da vergonha. E torcia, realmente torcia para que ele não fosse de sandália. Encarava qualquer outro sapato, até o tal do sapatênis, que achava brega demais.
Quando chegou, André achou a timidez de Diana uma graça. Adorava ver uma moça baixar os olhos e corar ao ver seu pretendente. Ao observar o rapaz, ela fuzilou os pés dele com os olhos e respirou aliviada quando se deparou com um sapato social. Achava lindo sapato Democrata, sinal que o garçom não ganhava assim tão mal.
E por semanas os almoços de Diana foram muito especiais. Mas chegou o grande dia, ou melhor, a grande noite. Levada por uma taça de vinho e pela baladinha de sua novela predileta,Diana foi se livrando do que a incomodava: blusa, saia, sutiã e sapato. Não, sapato não, gritou, deixando André meio atordoado, sem entender o motivo do desespero. Será que ainda era virgem? Tentando amenizar a situação André cobriu Diana de beijos, mas não teve vontade de continuar quando chegou nas unhas dos pés, ou na falta delas. Sentiu ânsia, mas continuou. Ele também se despiu: blusa, calça, cinto, cueca, sapatos e meia. Ela ficou muda, empalideceu ao ver um verdadeiro pé de anjo, perfumado e macio, com unhas tão perfeitas, cantinhos tão arredondados, uma delícia! Ela se olhou longamente no espelho do teto e então começou a lamber os dedos dos pés do amante, arrancando num só golpe a cutícula e parte da unha do polegar, que era sempre o mais apetitoso. O grito de André se mesclou ao de Diana, que agora gozava como nunca em sua vida.

Alvo

Tudo é gatilho: oportunidade, candidato ou suicídio.