quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Retrato de uma perda

Hoje quero falar das perdas fulgazes, destas que acontecem como um soluço súbito. Destas que depois do choque fica o medo. Medo de não existir mais, medo do que não faz mais sentido. Porque tudo um dia perde o sentido, pelo menos o lógico. As lembranças das perdas talvez sejam piores do que elas próprias. Falo sentada na primeira fileira da dor, lugar de onde se pode ver sua cor, sentir seu cheiro, de onde já se entende seus truques e sinais. Sim, a morte tem cara e tem cheiro e jeito. Tudo está tão solto num universo onde tantos já se foram e tantos ainda se vão. No meio de uma tarde meio gélida, meio sem sentido, chegam notícias que gelam o coração. Não tenho boa relação com as despedidas, principalmente as eternas.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Aos teus pés

Quando Diana nasceu, a vidente garantia à sua mãe que todos viveriam aos pés de sua filha. A mãe ficou orgulhosa, saiu contando para todo mundo que sua filha seria uma vitoriosa, teria uma vida de rainha, bem diferente da que foi a sua.
Ela fora um bebê lindo, loirinho de olhos azuis. Fofa, mesmo com aquelas unhinhas assim, tão estranhinhas. De tão tímida, muitos achavam que Diana era muda, motivo que a fez passar a infância sem amigos e a adolescência sem namorados. Ninguém queria se aproximar da “esquisitinha” como a chamavam, ou da menina que trocava os pés pelas mãos, segundo os vizinhos que preferiam nem mais chegar perto da garota.
Enquanto criança, o problema havia sido as constantes verminoses causadas pelo estranho tique, diagnosticado pela mãe como praga de uma vizinha. Até então, tudo foi considerado apenas uma peraltice, só que a adolescência chegou. Para ela, ir à primeira consulta no ginecologista foi tranqüilo. Difícil e torturante foi entrar pela primeira vez em um salão de beleza, empurrada pela mãe para comemorar os seus quinze anos. Afinal, já era uma mocinha e precisava desses caprichos. Deste dia Diana só lembrava estar folheando um exemplar antigo de “Contigo” e de como o nervoso de repente lhe tomara corpo e consciência. Depois os flashes de lembrança teimavam em reviver o modo com que se atirou ao chão, como um soldado em pose de ataque, ou de defesa. Ela bem que insistiu mais de uma vez, mas todas as tentativas foram fracassadas, acompanhadas pelos olhares de misericórdia das cabeleireiras. A cada vez Diana era arrastada pela mãe, que passava uma temporada enclausurada de vergonha depois de cada incidente.
Infelizes também eram suas visitas à sapataria. Entrava, olhava, passeava entre as botas 36 e os scarpins 42 e não resistia em dar uma espiada nos provadores, que refletiam aquelas pequenas e grandes figuras sempre tão concretas, tão sempre no chão, tão instigantes.
Mesmo tentando lutar contra os outros e consigo mesma, Diana resolver desistir. Já era impossível continuar na pequena vila do interior do Rio Grande do Sul tendo esta mania tão esquisita. Iria embora pra longe, bem longe, talvez algum médico da cidade grande lhe desse alguma resposta convincente para o seu mal.
Sua mãe chorava na rodoviária, mas sabia que era o melhor para a família. Também já não aguentava mais as risadas, os conselhos de internação e as chacotas dos familiares. Sua casa, antes muito freqüentada, agora era só silêncio e vergonha. Mal ouviu a última chamada tentando lembrar da oração de São Jorge, “dê pés para os meus inimigos, mas que eles nunca me alcancem. Eram pés ou asas?”. Estava confusa.
O barulho da paulicéia assustou Diana, que acertou tomar o ônibus e desembarcar em frente da pensão indicada por Cristiane, que foi a única que conseguiu manter o posto de melhor amiga por nunca ousar usar chinelos na sua frente. Os dias foram passando. Eles refletiam a cor dos prédios centenários por onde passava a caminho da escola onde lecionava. Eram todos iguais, até chegar o verão, época irritantemente perfeita para rasteirinhas, sandálias e chinelos. Ela não gostava da estação. Era nesta época que aumentava a curiosidade sobre a sua preferência por botas, de todos os estilos. Micose era a desculpa de sempre. A dor causada pelas biqueiras de couro batendo nas suas feridas não era maior do que o trauma e a vergonha das marcas do seu passado. Passava longe dos salões de beleza, sapatarias e de tudo o que lhe lembrasse seu destino esquisito e mal traçado.
Tudo foi em vão quando conheceu André, o garçom que lhe atendia diariamente no boteco onde almoçava. Algumas conversas e resolveram marcar o primeiro encontro, que para Diana tinha um peso muito maior do que para qualquer outro mortal. Era o medo da aprovação, da reprovação, da descoberta e da vergonha. E torcia, realmente torcia para que ele não fosse de sandália. Encarava qualquer outro sapato, até o tal do sapatênis, que achava brega demais.
Quando chegou, André achou a timidez de Diana uma graça. Adorava ver uma moça baixar os olhos e corar ao ver seu pretendente. Ao observar o rapaz, ela fuzilou os pés dele com os olhos e respirou aliviada quando se deparou com um sapato social. Achava lindo sapato Democrata, sinal que o garçom não ganhava assim tão mal.
E por semanas os almoços de Diana foram muito especiais. Mas chegou o grande dia, ou melhor, a grande noite. Levada por uma taça de vinho e pela baladinha de sua novela predileta,Diana foi se livrando do que a incomodava: blusa, saia, sutiã e sapato. Não, sapato não, gritou, deixando André meio atordoado, sem entender o motivo do desespero. Será que ainda era virgem? Tentando amenizar a situação André cobriu Diana de beijos, mas não teve vontade de continuar quando chegou nas unhas dos pés, ou na falta delas. Sentiu ânsia, mas continuou. Ele também se despiu: blusa, calça, cinto, cueca, sapatos e meia. Ela ficou muda, empalideceu ao ver um verdadeiro pé de anjo, perfumado e macio, com unhas tão perfeitas, cantinhos tão arredondados, uma delícia! Ela se olhou longamente no espelho do teto e então começou a lamber os dedos dos pés do amante, arrancando num só golpe a cutícula e parte da unha do polegar, que era sempre o mais apetitoso. O grito de André se mesclou ao de Diana, que agora gozava como nunca em sua vida.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O que é o algo?

Aquele na masmorra não sou mais eu.
Sem sotaque vago, sem gânglios à mostra, sem desdêmonas flutuantes, penumbra.
Quebra o vitral do pranto e deságua num frágil constelário.
Sem o cálculo funerário, rascunha campos de ideograma e desfaz-se.

A megera mestrada

Quarenta reizinhos e um bobo da corte. Luisa sentia-se impotente diante das carinhas angelicais cujas máscaras caiam cada vez que ela pisava em sala de aula. Sentada no banco traseiro da linha Norte-Sul, a professora mal começava o dia e já previa o dia desastroso que a esperava.
- O tempo que eu gasto com quem não quer aprender, posso gastar sendo uma animadora de platéia. Se a ideia é ser uma diversão para os outros, pelo menos ganharia mais.
Luisa lembrava de cada uma daquelas carinhas que em breve encontraria, fazendo o pensamento ir longe.
- É isso que dá ser professora de quarta série. Ainda mais de escola pública...de escola pública. Não, não, só eu mesmo pra escolher esse fim.
Junto com a queimação trazida pelo café forte para acordar depois de uma noite corrigindo provas, a professorinha começava a desfiar o seu rosário de predicativos aos seus alunos.
- Diabinhos egocêntricos. FEBEM, deviam todos ir pra FEBEM. Esse sim é o lugar deles. Arrogantes, burros, idiotas. Quem eles pensam que são?, pensava enquanto olhava para o menininho com cara de “Denis, o pimentinha” que sentara ao seu lado.
E continuava:
- Marginais, revoltados, projetos de ditadores, boçais. Saudosa palmatória! Se eu pego esses moleques, uix, não é bom nem pensar. Meu Deus, tomara que essa TPM passe logo senão ainda vou esfolar um hoje.
Na roda dos xingamentos, os pais também eram presença constante.
- Egoístas. Jogam seus filhos aqui pra gente educar. Assim é fácil ter filho. É só deixar aqui, passar pra pegar e jogar em outra escolinha da vida. Bando de folgado!
A demora do congestionamento só fazia aumentar a irritação da mestra.
- Professor já era na era da internet. Não precisa ensinar mais nada para estes geniozinhos. Já nascem sabendo de tudo, nunca vi!
O farol abriu e desafogou o trânsito entre a Getúlio Vargas e a Santa Catarina. Ainda bem, estava quase chegando. Nem queria pensar se ouvisse a voz de gralha da diretora reclamando do atraso.
Um ponto antes da escola, Luisa já se levantou para garantir lugar na porta de saída. Tropeçando nos próprios pés, Luisa avistou de longe alguns dos seus alunos, que vieram correndo em sua direção com um presente na mão.
- Oi fessora. Olha o que a gente fez pra você.
- Olhou para o embrulho com tanta ternura que os olhos, vermelhos e irritados, encheram-se de lágrimas. É, ela tinha escolhido certo. Como podia ter passado pela cabeça ser outra coisa na vida?

segunda-feira, 20 de julho de 2009

sexta-feira, 17 de julho de 2009

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Maré de ilusão

Agora fecho-me em ostra.
E borbulho desgosto.
Eu, sereia ensimesmada,
canto pra esquecer o sofrimento.

Afundo no lembrar que já não quero
perdendo-me na profundeza abissal da noite.
Anseio vir à tona...
E aspirar o dia.

Alvo

Tudo é gatilho: oportunidade, candidato ou suicídio.